Dia Internacional da Conscientização sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos: Um Chamado à resiliência


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Celebrado anualmente em 29 de setembro, o Dia Internacional da Conscientização sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos (PDA), instituído pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), serve como um alerta global para um dos maiores paradoxos da nossa era: enquanto milhões de pessoas enfrentam a fome, toneladas de alimentos são perdidas ou desperdiçadas ao longo de toda a cadeia produtiva.

A complexidade deste problema acarreta profundas implicações sociais, econômicas e ambientais. Desde os sistemas de produção, a cadeia logística de transporte e armazenamento, até a gestão de resíduos pós-consumo, os impactos das perdas e desperdícios de alimentos vão além da elevação de custos e aspectos financeiros, mas também emitem quantidades expressivas de Gases do Efeito Estufa (GEE), contribuindo para o fenômeno das mudanças do clima e agravando a questão da insegurança alimentar. Neste sentido, distinguir a  perda e desperdício é o primeiro passo para dimensionar o desafio e traçar soluções eficazes.

A diferença conceitual e o peso do problema

A perda de alimentos ocorre nas fases de plantio, colheita e pós-colheita, incluindo transporte, armazenamento e manuseio, antes dos alimentos chegarem na fase de varejo e consumo. A Embrapa destaca que perdas significativas ocorrem no campo devido a práticas de manejo inadequadas e à falta de acesso a tecnologias que poderiam aumentar a eficiência da colheita e do armazenamento, além de dificuldades no escoamento da produção.  A perda dos alimentos é mais comum em países em desenvolvimento, e representa cerca de 14% no contexto de perdas e desperdícios no Brasil.

O desperdício de alimentos refere-se aos alimentos que são descartados no varejo e no consumo final (comércio, residências e serviços de alimentação). Comportamentos de compra por impulso, falta de planejamento, embalagens excessivamente grandes, padrões estéticos rigorosos para frutas e vegetais no varejo e o descarte de alimentos ainda próprios para o consumo são os grandes vilões nesta fase. Enquanto as perdas são mais prevalentes em economias em desenvolvimento, o desperdício é um problema global generalizado, e representa cerca de 19% no contexto de perdas e desperdícios, com a maior parte (60%) ocorrendo em residências.

A FAO estima que cerca 30% da produção de alimentos para consumo humano é perdida ou desperdiçada a cada ano. De acordo com o relatório UNEP Food Waste Index Report 2024, isso representa mais de 1 bilhão de toneladas. No Brasil, os números também são alarmantes. Estudos da ONU apontam que o país está entre os dez que mais desperdiçam, embora seja um dos maiores produtores de alimentos do mundo. 

Impactos ambientais silenciosos e devastadores: Um modelo insustentável

O sistema alimentar global é uma das maiores e mais complexas redes de atividades humanas, e representa um consumidor massivo de energia e um dos principais motores das emissões antropogênicas de GEE. 

O relatório " State of Food Security and Nutrition in the World" (SOFI), publicado anualmente pela ONU, tem consistentemente alertado para as consequências ambientais das perdas e desperdícios de alimentos. A utilização de aproximadamente 30% da área agrícola mundial, e cerca de 38% do consumo total de energia empregada na cadeia produtiva, são exemplos que fazem parte da conta das perdas e desperdício de alimentos. Além disso, a destinação final destes alimentos, geralmente em aterros sanitários, agrava ainda mais o cenário ambiental. A decomposição anaeróbica da matéria orgânica gera metano (CH₄), um gás de efeito estufa com um potencial de aquecimento global cerca de 28 vezes maior que o do dióxido de carbono (CO₂). Estudos associam a perda e o desperdício de alimentos a cerca de 8 a 10% das emissões antropogênicas globais de Gases do Efeito Estufa (GEE). Para colocar em perspectiva, isso é quase 5 vezes o total de emissões do setor de aviação. O aumento da emissão dos GEE, como o CO2 na atmosfera, também aumenta a sua concentração nos oceanos, o que contribui para a acidificação das águas e impacta a biodiversidade marinha. Os recifes de coral, por exemplo, abrigam 25% da vida marinha, e a sua degradação compromete a reprodução e nutrição de organismos nos níveis tróficos superiores, levando a um declínio dos estoques pesqueiros em todo o planeta

O resultado direto é a menor disponibilidade de proteína para milhões de pessoas, e perdas econômicas para os setores de pesca e aquicultura. Mesmo que o mundo consiga atingir a meta ambiciosa do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas – limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C – espera-se que 70% a 90% dos corais construtores de recifes morram. Se as temperaturas subirem 2°C, 99% perecerão.  O aquecimento e acidificação dos oceanos pode impactar a produção de alimentos para além da biodiversidade marinha, considerando a sua interface com a atmosfera e o seu papel relevante na definição dos padrões climatológicos. A troca de calor entre os oceanos e a atmosfera impulsiona a circulação atmosférica, afetando os padrões de vento, a distribuição da umidade do ar e as temperaturas. Variações na temperatura da superfície do mar podem impactar fenômenos climáticos como o El Niño e a Zona de Convergência Intertropical, alterando a distribuição e a intensidade das chuvas e temperaturas em diversas partes do mundo, com impactos diretos na agricultura e pecuária.

A ameaça à segurança alimentar é sistêmica, e composta por múltiplos processos interconectados. Não se trata apenas da perda de uma espécie específica, mas da degradação de todo um sistema de produção de alimentos. Portanto, a segurança alimentar global depende também da nossa capacidade de evitar que o oceano atinja seu ponto de inflexão, um limiar crítico considerado potencialmente irreversível. 

Em 2022, apenas 21 países incluíram a perda e/ou redução do desperdício de alimentos em seus planos climáticos nacionais (NDCs). O processo de revisão das NDCs de 2025 oferece uma oportunidade fundamental para aumentar a ambição climática, integrando a perda e o desperdício de alimentos. 

No Brasil, foi lançada em 2018 a Estratégia Intersetorial para a Redução de Perdas e Desperdício de Alimentos, com o objetivo de coordenar ações direcionadas, por meio da gestão mais integrada e intersetorial de iniciativas do governo e da sociedade, de forma alinhada com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com previsão de ações em 4 eixos: I - Pesquisa, Conhecimento e Inovação, II - Comunicação, Educação e Capacitação, III - Promoção de Políticas Públicas, IV – Legislação.

Soluções Locais para um Problema Global

Como parte da Agenda 2030 na qual o Brasil é signatário, o ODS 12- Produção e Consumo Sustentáveis tem como uma das metas “Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita.” Os esforços para a implementação de soluções locais contra as perdas e o desperdício de alimentos devem ser colaborativos entre todos os setores da sociedade.

  • Na Produção: Maior investimento em tecnologias de colheita e armazenamento, melhoramento de infraestrutura de transporte e políticas públicas de incentivo a boas práticas agrícolas são fundamentais para reduzir as perdas na fase inicial da cadeia. ·        
  • No Varejo e Consumo: Campanhas educativas são essenciais para conscientizar os consumidores sobre o planejamento de compras, o aproveitamento integral dos alimentos e a compreensão dos prazos de validade. ·        
  • Em todas as fases: políticas públicas para programas educativos, incentivos para a transição dos sistemas alimentares, e investimento em tecnologias sociais eficazes para a redistribuição de excedentes alimentares. 

Em âmbito institucional, o Sesc desenvolve o Programa Sesc Mesa Brasil, uma rede nacional de Bancos de Alimentos que redistribui excedentes alimentares e realiza ações educativas para o combate ao desperdício de alimentos. Desde 2003, já foram mais de 45 milhões de quilos de alimentos excedentes de produção ou fora dos padrões de comercialização, mas ainda bons para o consumo, redistribuídos para os pratos de milhares de pessoas em mais de 70 municípios catarinenses.

Aproveitamento integral dos alimentos - Lugar de comida é no prato!

O aproveitamento integral dos alimentos é uma prática sustentável e nutritiva! Cascas, talos e sementes, muitas vezes descartados, são ricos em vitaminas, fibras, minerais e compostos bioativos. Incentivar seu uso em receitas criativas não só reduz o desperdício, mas também aumenta o valor nutritivo das refeições, sendo uma estratégia viável para residências e serviços de alimentação.

A importância do aproveitamento integral dos alimentos não se restringe aos benefícios individuais, mas se estende ao campo da saúde pública. Essa prática se conecta diretamente com documentos mais amplos, como a "Política Nacional de Alimentação e Nutrição" e o "Guia Alimentar para a População Brasileira", que incentivam o consumo de alimentos in natura e a redução de alimentos ultraprocessados. Essa validação eleva a prática de uma simples dica culinária para uma intervenção estratégica em saúde pública.

O sistema alimentar é um componente fundamental para a sustentabilidade e a resiliência. A sua dimensão, no entanto, o posiciona como um dos maiores desafios ambientais do século XXI. O padrão de produção e consumo dos alimentos é responsável por uma parcela importante da emissão de GEE de origem antropogênica. Os relatórios oficiais reiteram a urgência de se abordar essa questão como parte integrante das estratégias de combate às mudanças climáticas e à insegurança alimentar.

Aproveitar integralmente os alimentos, portanto, não é meramente uma tendência culinária, mas um imperativo ético e de saúde, com benefícios que se estendem muito além da mesa do consumidor, culminando em uma sociedade mais saudável e um planeta mais sustentável.

O Dia Internacional da Conscientização sobre Perdas e Desperdícios de Alimentos é mais do que uma data no calendário. É um chamado à ação para governos, empresas e cidadãos. Reduzir perdas e desperdícios é uma das formas mais eficazes de combater a fome, mitigar as mudanças climáticas e contribuir para um sistema alimentar mais justo e sustentável para todos.”


Por: Letícia Zago – Nutricionista Coordenadora do Sesc Mesa Brasil-SC – Mestranda em Clima e Ambiente (IFSC)
Contribuições: Dr. Thiago Pereira Alves – Professor Coordenador do Programa de Mestrado em Clima e Ambiente do IFSC.

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